
Bem hajas tu, amiguinha,
A maior desgraça de uma nação pobre é que, em vez de produzir riqueza, produz ricos. Mas ricos sem riqueza. Na realidade, melhor seria chamá-los não de ricos mas de endinheirados. Rico é quem possui meios de produção.
Rico é quem gera dinheiro e dá emprego. Endinheirado é quem simplesmente tem dinheiro. Ou que pensa que tem. Porque, na realidade, o dinheiro é que o tem a ele. A verdade é esta: são demasiado pobres os nossos “ricos”.
Aquilo que têm, não detêm. Pior, aquilo que exibem como seu, é propriedade de outros. É produto de roubo e de negociatas. Não podem, porém, estes nossos endinheirados usufruir em tranquilidade de tudo quanto roubaram. Vivem na obsessão de poderem ser roubados. Necessitariam de forças policiais à altura. Mas forças policiais à altura acabariam por os lançar a eles próprios na cadeia. Necessitariam de uma ordem social em que houvesse poucas razões para a criminalidade. Mas se eles enriqueceram foi graças a essa mesma desordem.
O maior sonho dos nossos novos-ricos é, afinal, muito pequenito: um carro de luxo, umas efémeras cintilâncias. Mas a luxuosa viatura não pode sonhar muito, sacudida pelos buracos das avenidas. O Mercedes e o BMW não podem fazer inteiro uso dos seus brilhos, ocupados que estão em se esquivar entre chapas muito convexos e estradas muito côncavas. A existência de estradas boas dependeria de outro tipo de riqueza. Uma riqueza que servisse a cidade. E a riqueza dos nossos novos-ricos nasceu de um movimento contrário: do empobrecimento da cidade e da sociedade. As casas de luxo dos nossos falsos ricos são menos para serem habitadas do que para serem vistas. Fizeram-se para os olhos de quem passa. Mas ao exibirem-se, assim, cheias de folhos e chibantices, acabam atraindo alheias cobiças. O fausto das residências chama grades, vedações electrificadas e guardas privados. Mas por mais guardas que tenham à porta, os nossos pobres-ricos não afastam o receio das invejas e dos feitiços que essas invejas convocam.(Continua...caso lhe interesse ler todo o documento e garanto-lhe que vale a pena, clique no endereço):
http://www.macua.org/miacouto/MiaCoutoinSAVANA13122003.htm
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Publicou carolina, do livro "Pensatempos" de Mia Couto.
“há predisajens com o xão” (2002) de ONDJAKI
estória para Wandy
quero dizer-lhe: muitos mais velhos começam assim uma estória: «era uma vez...» nós começaremos em mais crença: é uma vez uma menina que sabia uma estória. essa estória não era verdadeira, mas de tanto acreditar nela, a coisa se revoltou para averdades. era uma estória muito simples: que uma menina tinha contagiado toda a natureza com seus soluços, e que o universo todo vivia assoluçadamente, embora quem nele vivesse nunca tivesse notado. como a menina trouxera a estória para o mundo, já toda gente sabia e sentia seus soluços. essa toda gente veio falar com a menina: a única cura é a muita água!, agora nos regue devidamente – exigiram. a menina nunca tinha regado pessoas nem mundos, só árves e pulantas; e ficou triste. de triste que estava, chorou. da choradeira caíram as tantas lágrimas. da tanta inundação é que as pessoas do mundo deixaram de soluçar umas nas outras.
se não me põe crenças, queira explicar: porque o corpo humano, em sua maiorinterna percentagem, é composto de águas?
[enquerendo conhecer a outra vertente desta estória, procure Lueji]
estória para Lueji
é uma vez uma menina de muitíssimos soluços. tantos, que precisava de intervalo de soluço para respirar. não brincava a menina, pois tinha era que fazer medições pulmonares a fim de calcular inspira e expirações. para dormecer, era necessário pedir alguém soluçasse por ela, só assim ela se entregava a sonho sem sobressalto de peito. essa menina tinha um jacó: de tanto imitá-la, o jacó ganhou vício de soluçar, quase-quase igual nela. a menina tinha uma flor: um dia tocou na flor num momento assoluçado, pelo que a flor ganhou solucências também. um dia, uma abelha pousou na flor, e assim seu voo ficou abrupto de soluços. essa abelha pousou num lago, e tanto peixes como montanhas, já ninguém sabia de viver sem assoluçar. foi assim que o mundo se tornou ele próprio um soluço em todo o universo. hoje – desconto-lhe esse segredinho só para si – já ninguém nota isso porque a terra contagiou uns tantos planetas: o todo universo se soluça constantemente. assim, dividindo essa enorme soluçada, ninguém sabe que todos vivemos em saltitados assoluçamentos.
se não me põe crenças, queira explicar: porque vive o sol em tanta e tão amarelada sede?
[enquerendo conhecer a outra vertente desta estória, procure wandy]
Lena Almeida
Publicou carolina