terça-feira, janeiro 22, 2008

Outras gentes, outras terras...

O Cego Aderaldo

Aderaldo Ferreira de Araújo é uma legenda de cantoria nordestina.
Cego, tradição de um Homero ou de um Tirésias, cumpriria o destino traçado pelos deuses de ser privado da visão para ser apenas voz. Mas que conheceu a luz e a cor até aos 18 anos.
1 – Eu venho de muito longe, desde o dia 24 de junho de 1878. Sou filho da cidade do Crato, onde nasci em modesta casa da Rua da Pedra Lavrada, atualmente Rua da Vala. Meu pai, Joaquim Rufino de Araújo, era alfaiate. Minha mãe, Maria Olímpia de Araújo, era de prendas domésticas, como devem ser todas as mulheres. Meu sofrimento, na vida, vem também de muito longe. Quando eu tinha pouco mais de dois anos, perdi meu pai. Lá ouviram falar em homem que tem ataque de congestão? Aquele velho e honrado alfaiate, que largara Crato para viver em Quixadá, aonde viera buscar fortuna, fora agarrado pela desgraça. Que pode fazer um alfaiate mudo, surdo e aleijado? Desde esse momento Amém necessidade entrou em nossa casa. Entrou e se abancou. Eu, com idade de cinco anos, tive que trabalhar na casa do Sr. Miguel Clementino de Queiroz, Amém dois vinténs por dia... E era com esse dinheiro que eu podia sustentar meu pai. Um cego andarilho, que não vendia histórias, papel reservado a eles na tradição européia, mas que ganhava a vida como um “performer” medieval. O importante não era apenas o que ele dizia, mas como dizia, a eloqüência da voz, ao artifícios da retórica, a verve de quem sempre tinha um argumento a mais para exibir no último instante e fazer calar o rival.

“Canto para distrair,
Este meu curto poema:
Vou fugindo da miséria
Que é este o penoso tema,
Desta terra de Alencar,
Deste berço de Iracema.
Fugi com medo da seca,
Do pesadelo voraz
Que alarmou todo o sertão
Da cidade aos arraiais”.
Em Belém do Pará eu conheci muitos cantadores.
Mas o mais afamado,
que emendou a camisa comigo,
foi o índio Azuplim.
Nossa batida foi a que se segue...
Eu saí do Ceará
Deixei meu triste macambo,
Com medo do dezenove,
Este pesadelo bambo.
Tinha o coronel Monturo
Junto com doutor Molambo...
A dona fome na frente,
Na cadeira do trapiche,
Dizendo:
No Ceará Tudo é fofo e nada é fixe.
Juro que aqui nesta terra
Não vinga mais nem maxixe...
A dona Fome me olhou
E disse a mim: - Eu pego!
Eu disse: - Não senhora!
Eu sei por onde navego,
Quem tem vista corre logo,
Quanto mais eu sendo cego...
Segui para Fortaleza,
Dei uma viagem além.
O barco era o “Maranhão”,
E até corria bem,
Com três dias e três noites
Chegando nós em Belém...
Quando eu cheguei em Belém,
Me encostei naquele cais.
- Aonde vai esta linha?
Eu perguntei a um rapaz
Ele disse: - Nesta linha
Passa um trem para São Brás...
Eu parti para São Brás,
Para casa de Gaudêncio
Que já conhecia bem,
Ele, Salina e Meréncio;
Junto estes amigos
Não pude guardar silêncio...
Fui para Madre de Deus,
Terra de um povo fiel,
Ali ganhei qualquer cousa
Tomei açaí com mel,
De manhã peguei o trem,
Fui para Santa Isabel...
Depois fui para Americana,
Cantei lá no Apéu,
Do sitio de São Luís
Eu fui pra Jambuaçu;
Eu cantei no Castanhal,
E no Igarapeaçu...
No primeiro Caripi
Eu cantei, lá fui feliz,
No segundo Caripi
Cantei tudo quanto quis,
E ali tomei o trem,
Fui cantar em São Luís....
Ali chegou um convite,
Eu para Muricizeira,
Depois, cantei no Burrinho
Cantei no Açaí Teuã...
Fui cantar no Timboteuã...
Segui para Capanema
Com coragem e esperança.
Passei uns dois ou três dias
E segui para Bragança,
Dizendo sempre comigo:
- Quem espera em Deus não cansa...
Quando eu cheguei em Bragança,
Não quis ir no Benjamim,
Não encontrando hospedagem,
Me hospedei num botequim,
Que era coberto e cavaco
E circulado a capim...
O dono do botequim
Veio a mim e perguntou:
- Cego de onde tu és?
Me diga se é cantador.
Me diga se não tem medo
De azuplim trovador...
Me perguntei: - Não senhor!
Será algum rio-grandense
Ou mesmo um paraíbano,
Ou um cantador cearense?
Ele disse: - Não senhor,
É um cantor paraense...
Quando findei a palavra
Vi o paraense chegar,
Ele trazia consigo
Uma viola e um ganzá,
E trazia um tamborim,
Que é instrumento de lá...
Ele afinou a viola,
Quando bateu no ganzá,
Deu um tom no tamborim
Para o baião entoar,
Eu tirei a rabequinha
E fiz a prima chorá...
C - Eu lhe disse:
- Oh! Paraense,
Es uma ninfa de fada,
Teu cântico me parece
A deusa da madrugada.
Eu lhe peço, amicíssimo,
Que cante a sua toada...
A - Cego, minha toada é,
Um trabalhador garantido.
Você pra cantar mais eu
Precisa ser aprendido,
Queira Deus tu me acompanhe, ai ai!
Pra cantar nesse gemido...
C - Meu amigo, o teu gemido,
Tem destacado valor,
Canta bem perfeitamente,
Já vi que é bom cantador,
Mas amigo, esse gemido,
Me desculpe , que eu não dou...
A - Se num dás um só gemido
Também não és cantador,
Vá cobrar logo o dinheiro.
Do mestre que lhe ensinou, ai, ai!
O cego já apanhou...
C - Se gemer foi cantoria,
Você é bom cantador,
Pois gemes perfeitamente,
No gemido tem valor,
Mas geme com grande dor...
A - Ou que gema ou que não gema,
A boa palavra encerra,
Cego, cante aqui mais eu,
Que eu vim lhe fazer guerra,
Quero que você me diga, ai, ai!
A linguagem da minha terra...
C - A linguagem da tua terra,
Não é linguagem mesquinha,
É toda no guarani
Estudada, é bonitinha!
Para que não perguntaste
A linguagem da terra minha?...
A - Eu quero é que diga da minha
Por que muda de figura:
Cego, diga para mim
O que nós chama mucura,
Quero que você me diga, ai, ai!
O que é saracura...
C - É verdade, essa linguagem
Muda mesmo de figura,
O que nós chama casaco
Vocês só chamam mucura
E o que nós chama sericóia
Vocês chamam saracura...
A - Cego, diga para mim:
O que é jamaru?
Queira Deus você me diga
O que é jacuraru,
O que é macuracar ai, ai!
O que nós chama jambu...
C - É o que nós chama cabeça,
Vocês chama jamaru,
O que nós chama tejo,
Vocês chama jacuraru,
Tipi é mucuracar,
E agrião chamam jambu...
A - Cego, diga para mim
O que nós chama jibóia,
Quero que você me diga
O que é tiranabóia,
Diga aí pra eu saber, ai, ai!
O que é “pegando a bóia”...
C - No Piauí tem um besouro
De nome tiranabóia,
Nossa cobra-de-veado
Cresce aqui, chamam jibóia,
Em minha terra almoço e janto,
... tanto aqui só “pego a bóia”...
A - Cego, diga para mim
O que é a sacupema,
Veja se você me diz
O que é piracema,
Diga aí rapidamente, ai, ai!
O que nós chama panema...
C - O que nós chama raiz
Vocês chama sacupema,
O que nós chama peixe muito
Vocês chamam piracema;
A um sujeito preguiçoso
Chega aqui chamam panema...
A - Cego, diga para mim
A língua dos Tupinambá,
A língua dos Aimoré,
Ou dos índios Caetá,
Ou sobre os índios Tamoios
Ou índios Tamaracá...
C - Sobre as gírias dos índios,
Desde o Norte até o Sul,
Pixueira é coisa fria,
Um beijo chama meiru,
Tacioca é uma é uma casa,
Morada de caititu...
A - Agora o cego Aderaldo
Me respondeu muito bem,
Vi que gírias dos índios,
Ele segue mais além,
Pelo jeito que estou vendo
Você é índio também...
C - Meu amigo eu não sou índio,
Nasci num pobre lugar:
Que é tão propenso a seca
Que obriga agente emigra
Sol danado de Iracema,
Terra de Zé de Alencar...
A - Cego, deixa de mentira,
Tua terra não tem nome,
Tua terra é uma miséria,
É lugar que não se come,
De lá veio cinco mil,
Tudo pra morrer de fome...
C - Dos cinco mil que vieram
Algum era meu parente,
Uma era tio, outro primo,
Conterrâneo e aderente,
Mais esse povo só come
Massa de figo de gente...
A - Saí daí, cego canalha,
Com a sua poesia,
Nesta minha carretilha
Você hoje se esbandalha,
Teu cântico tem grande falha,
Quer cantar mais não convém...
Você somente o que tem
É entrar no bacalhau;
Apanhar de peia e pau
Cearense aqui não vai bem...
C - De onde tu vens contrafeito,
Cabeça de onça mancho,
Bote o matulão abaixo
E conte a história direito,
Me diga o que aqui tem feito
Por estes mundos além,
Se você matou alguém
Ou então se fez barulho,
Vai muito mau seu embrulho,
Paraense aqui não vai bem...
A - Quando eu pego um cantador
Dou três tacada danada,
Lhe deixo a cara inchada
De relho e chiquerador,
É o café que lhe dou,
É isto que lhe dou,
E não diz nada a ninguém,
Apanha e fica calado,
Triste e desmoralizado
Cearense aqui não vai bem...
C - Disse uma velha na rua
Que em outros tempos atrás
Você e um seu rapaz
Lhe roubaram uma perua;
Veja que moda esta sua
Roubando quem vai, quem vem,
Como tu não tem ninguém
Mais ladrão do que você.
Tome lá meu parecer:
Paraense aqui não vai bem...
A - O cantador que eu pegar
Pelo meio da travessa
Nem Padre lhe confessa
Enquanto eu não lhe soltar,
Dou-lhe arrocho de lhe quebra,
Osso e costela também,
Quebro tudo que ele tem,
Deixo-lhe o corpo em bagaço,
Tudo quanto eu digo eu faço,
Cearense aqui não vai bem...
C - Até as moças donzelas
Pediram aos cabras da feira
Para meter-lhe a madeira
E arrebentar-lhe as costelas.
Você abra o olho com elas,
Boa surra você tem,
Boa surra você tem,
Neste dia também vem
A velhinha da perua
Quebrar-lhe a cara na rua,
Paraense aqui não vai bem...
A - Também não quero brigar,
Não sou homem de intriga,
Eu não nasci para briga
E não vivo de pelejar;
Também não quero teimar
Porque isso não convém,
Lhe venero e quero bem,
Digo isso pode crer;
Não quero lhe aborrecer,
Cearense aqui vai bem...
C - Amigo, como mudou,
Que coisa misteriosa!
Tens o perfume da rosa
Que a pouco desabrochou.
Por isso tem o maior verdor
Do que lá no bosque tem.
O anjo lá de Belém
Ouviu nossa cantoria,
Entrarmos em harmonia,
Paraense aqui vai bem...
Havia quatro cervejas
Que um coronel apostou
Dizendo que todas quatro
Pertencem ao vendedor
Nós dois bebemos as cervejas
Nem um nem outro apanhou...

Cidade de Bragança – Estado do Pará, junho de 1919
Biblioteca Virtual do Estudante de Língua Portuguesa
(publicado por Aparecida Lopes)

7 comentários:

Anónimo disse...

E aqui está uma postagem que nos dá a conhecer o Aderaldo!
Gostei de ler!
Volta sempre ao nosso blogue, Aparecida!

Aparecida disse...

Obrigada Carolina, o Aderaldo é cantador de repentes, ou "Repentistas" como dizem no Brasil, criam na improvisação os versos, ao som de um pandeiro, ou pandeireta, ficam a desafiar a palavra, sempre com boa disposição.
É o folclore brasileiro.

Carolina disse...

Ainda bem que te agradou. Não sei quem descobriu a foto do Aderaldo. A música pedi ao Gil que arranjasse uma brasileira e cá está ela.
Vai mostrando a tua gente e os vossos costumes e cantares!
;))))

lami disse...

Um cheirinho a Nordeste. E percorremos com o "cantador" Aderaldo, o Ceará, o Maranhão, Recife, Baía, enfim um Brasil sertanejo,rural e pobre dos botequins, das tradições dos indíos e dos cabôclos... a lembrar Jorge Amado...

Anónimo disse...

Gostei imenso de ler,um grande beijo Aparecida, à muito que não a vejo.

Aparecida disse...

Olá Maria José,
Obrigada por ter gostado de um pouquinho da minha terra, acho essa de improvisação muito divertida, quem já esteve no nordeste brasileiro, sabe como é, andam os artistas pelas ruas, cantando esses repentes, que prendem a atenção das pessoas que vão passando, é uma forma de animação de rua, mas por conta e risco do próprio artista, que vai ganhando alguns tostões.
Agora tenho outros compromissos, que me impedem de frequentar algumas das actividades da ASAS, mas, é para a minha evolução. Obrigada, um beijinho da
Aparecida

António Gil disse...

Olá, Aparecida.
Gostei deste seu "Aderaldo". Sabe, antigamente em Lisboa, quando ia para o trabalho e apanhava um autocarro no Cais-do-Sodré, também lá haviam uns "Aderaldos" que cantavam o que chamávamos o "Fado da Desgraçadinha". Eram sempre histórias de grande sofrimento com mortes, facadas e muito sangue e traição à mistura. Vendiam depois as letras, já não me lembro a quanto, ganhando assim uns cobres. Até isso já desapareceu faz muito tempo, mas tenho saudades dessa época.